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Coluna: "Entre Aspas" com Ronaldo Castilho

Publicada em: 11/08/2025 09:32 - Colunas

Entre o altar e o palácio: O papel da religião na política

 

Ronaldo Castilho

 

A relação entre religião e política na Bíblia sempre foi tema de debates intensos, pois as Escrituras, embora não apresentem um sistema político formal, trazem princípios éticos e sociais que influenciaram governos e movimentos ao longo da história. Desde o Antigo Testamento, os profetas assumiam uma postura de denúncia diante de reis e autoridades corruptas, clamando por justiça social, defesa dos pobres e cuidado com os marginalizados. Michael Walzer observa que a Bíblia estabelece um padrão moral que deveria servir como base para a vida pública, enquanto John Howard Yoder, em “A Política de Jesus”, sustenta que Cristo adotou uma postura política radical, não pela via da força, mas pela transformação pacífica e pela subversão das estruturas de opressão. Já Reinhold Niebuhr via a necessidade de adaptar os ideais cristãos à realidade política, reconhecendo que a pureza dos princípios, por vezes, enfrenta os limites da realpolitik.

Durante a Idade Média, Tomás de Aquino justificava a autoridade legítima, mas defendia que o poder injusto poderia e deveria ser resistido. Calvino, na Reforma, alertava contra a obediência cega às vontades humanas corrompidas. No mundo contemporâneo, John Lennox defende que excluir Deus do espaço público é criar um vácuo moral perigoso, enquanto teólogos como Gustavo Gutiérrez enxergam no engajamento político uma forma de expressar os valores cristãos de justiça e fraternidade. Jim Wallis, por sua vez, defende uma atuação política profética, voltada à defesa dos pobres e vulneráveis, sem se deixar capturar por ideologias partidárias.

O ponto central é que a Bíblia pode inspirar políticas que promovam a dignidade humana e a justiça, mas também corre o risco de ser usada como instrumento de manipulação. Romanos 13, por exemplo, já foi interpretado como um chamado à obediência irrestrita às autoridades, servindo de argumento para legitimar regimes autoritários. A história mostra que, quando religião e política se unem de forma saudável, podem promover transformações positivas, mas, quando essa aliança se torna um jogo de interesses, o resultado é a opressão mascarada de discurso sagrado.

Nesse contexto, é inevitável falar sobre o controle eleitoral por influência indevida, prática comum no Brasil da República Velha, mas que ainda encontra formas disfarçadas nos dias atuais. Esse mecanismo consistia no domínio do eleitorado por coronéis e chefes políticos locais, por meio de coerção, dependência econômica ou favores, configurando um sistema de currais eleitorais. Para os que o praticavam, havia a “vantagem” de garantir resultados eleitorais previsíveis e manter o poder local, mas para a democracia era e continua sendo um veneno: anula a liberdade de escolha, mantém a população refém de interesses privados e reforça as desigualdades sociais. Mesmo em tempos modernos, ainda se observam práticas clientelistas que, de forma mais sutil, reproduzem essa lógica, seja pela troca de benefícios por votos, seja pelo uso da vulnerabilidade como ferramenta de controle.

A política inspirada na Bíblia deve ser aquela que promove a liberdade, a justiça e a dignidade de todos, não um meio de manipular consciências em nome de Deus. O controle eleitoral por influência indevida representa justamente o oposto: a negação da autonomia do cidadão e da responsabilidade individual diante de Deus e da sociedade. A mistura saudável entre fé e política exige discernimento, integridade e compromisso com o bem comum, sem transformar a religião em ferramenta de controle e sem deixar que o poder político corrompa a essência da mensagem bíblica.

Não podemos ignorar que, em várias partes do mundo, líderes políticos buscam apoio no discurso religioso para legitimar seus projetos de poder, criando uma espécie de “aliança sagrada” que, na prática, serve mais aos interesses da elite do que ao bem comum. Esse uso estratégico da fé não é novo e já aparece em narrativas bíblicas, quando governantes tentavam manipular símbolos e ritos para garantir lealdade popular. Ao invés de servir ao povo, a religião, nesse contexto, se torna escudo de práticas injustas e perpetuadoras de desigualdades.

Por outro lado, há exemplos históricos de atuação política inspirada na Bíblia que resultaram em grandes avanços sociais. O movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, liderado por Martin Luther King Jr., é um caso emblemático de como a fé, aliada à ação política, pode derrubar sistemas opressores e promover mudanças duradouras. A base bíblica de sua luta era o reconhecimento de que toda pessoa é criada à imagem de Deus, o que exige políticas que respeitem e protejam essa dignidade. Essa perspectiva demonstra que fé e política, quando unidas por princípios corretos, podem caminhar juntas de forma construtiva.

No Brasil, o desafio atual é discernir quando a presença de valores bíblicos no debate público contribui para a justiça e quando serve apenas para encobrir práticas antidemocráticas, como o controle eleitoral por influência indevida. A solução passa por educação política, fortalecimento da consciência cidadã e defesa intransigente da liberdade de voto. Somente assim será possível construir um ambiente em que a religião exerça um papel inspirador e transformador, sem ser cooptada por interesses que contradizem os próprios princípios que ela proclama.

 

Ronaldo Castilho é jornalista, bacharel em Teologia e Ciência Política, com MBA em Gestão Pública com Ênfase em Cidades Inteligentes e pós-graduação em Jornalismo Digital.

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