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Coluna: "Entre Aspas" com Ronaldo Castilho

Publicada em: 01/09/2025 10:21 -

A Construção da Identidade Nacional Brasileira: Entre o Passado e a Polarização do Presente

 

Ronaldo Castilho

 

A identidade nacional de um povo não surge pronta; ela se forma ao longo do tempo, no encontro entre o passado e o presente, entre tradições e rupturas, entre disputas e consensos. No Brasil, esse processo tem sido particularmente complexo, marcado por profundas desigualdades sociais e culturais, mas também por uma notável capacidade de miscigenação e reinvenção. Hoje, em meio a uma polarização política intensa, torna-se urgente refletir sobre como a nossa identidade se construiu, quais valores a sustentam e como podemos, enquanto sociedade, reencontrar caminhos de diálogo e coesão.

Desde o período colonial, pensadores têm buscado compreender o que significa ser brasileiro. Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, destacou o "homem cordial" como traço da cultura nacional: não a cordialidade como gentileza, mas a predominância do afeto e das relações pessoais na vida pública. Para ele, essa característica, ao mesmo tempo que nos torna calorosos e relacionais, também gera dificuldades na consolidação de instituições impessoais e republicanas.

Outro intelectual fundamental, Gilberto Freyre, em Casa-Grande & Senzala, enfatizou o papel da miscigenação na formação da sociedade brasileira. Para Freyre, o Brasil se destacou pela integração entre diferentes matrizes étnicas e culturais – indígenas, africanas e europeias – criando uma identidade plural e híbrida. Contudo, Freyre também foi criticado por, em certa medida, minimizar as violências da escravidão e da desigualdade racial, temas ainda latentes na sociedade brasileira contemporânea.

Já Darcy Ribeiro, antropólogo e pensador do século XX, via a formação do povo brasileiro como uma "nova Roma", uma civilização em construção, capaz de criar algo original a partir de sua diversidade. Para ele, o Brasil seria chamado a cumprir um papel singular no mundo, desde que enfrentasse suas contradições sociais e políticas.

Essas análises, ainda que elaboradas em momentos distintos, convergem em um ponto: o Brasil é uma nação em busca de si mesma. A pergunta “quem somos?” segue aberta, e a resposta parece depender do enfrentamento de nossas feridas históricas e da construção de um projeto comum de futuro.

No século XXI, essa busca por identidade encontra novos desafios. O país vive um cenário de polarização política sem precedentes desde a redemocratização. As últimas eleições revelaram uma sociedade dividida entre projetos antagônicos de nação, entre visões de mundo que muitas vezes parecem inconciliáveis. Essa polarização se manifesta não apenas nas disputas eleitorais, mas também nas redes sociais, nos ambientes de trabalho e até nas famílias.

É importante destacar que a polarização não é, em si, um problema. A pluralidade de opiniões é parte essencial da democracia. O que preocupa é quando as diferenças se transformam em ódio, intolerância e incapacidade de diálogo. O sociólogo Jessé Souza observa que a elite brasileira historicamente se valeu da divisão social para manter privilégios. Nesse sentido, a polarização atual pode ser vista como mais um sintoma de um país que ainda não conseguiu consolidar plenamente a cidadania para todos.

Outro aspecto relevante é que essa divisão política está diretamente ligada a problemas estruturais ainda não superados, como a desigualdade social, o racismo, a exclusão e a precariedade da educação. Um exemplo emblemático é a ausência de uma formação cidadã consistente nas escolas, o que contribui para que grande parte da população permaneça analfabeta política. Dados revelam que cerca de 95% dos brasileiros não sabem como se elegem vereadores e deputados estaduais e federais, desconhecendo que essas eleições seguem o sistema proporcional. Em vez de enfrentarmos esses desafios de forma coletiva e responsável, eles frequentemente são explorados como armas de disputa ideológica. Nesse cenário, a própria identidade nacional corre o risco de ser sequestrada por narrativas simplistas e excludentes, que pouco contribuem para a construção de uma sociedade democrática e plural.

A história mostra, contudo, que o Brasil tem uma capacidade singular de conciliação e reinvenção. Como destacou Darcy Ribeiro, nossa força está na diversidade. Mas essa diversidade precisa ser reconhecida e valorizada. Não podemos construir uma identidade nacional sólida ignorando as injustiças históricas nem negando a pluralidade de vozes que compõem o país.

Para isso, é fundamental recuperar a capacidade de diálogo. Boaventura de Sousa Santos, sociólogo português que estuda as democracias do Sul Global, aponta que sociedades plurais precisam de uma “ecologia de saberes”, ou seja, do reconhecimento de que diferentes perspectivas podem conviver e se complementar. Isso vale para o Brasil: indígenas, afrodescendentes, mulheres, trabalhadores urbanos e rurais, jovens e idosos – todos têm direito a voz na definição do projeto de país.

Além disso, o fortalecimento das instituições democráticas é essencial. Como lembra Sérgio Buarque, não basta a cordialidade das relações pessoais; precisamos de regras claras e de um Estado que funcione de forma republicana e impessoal. Isso exige combater a corrupção, mas também fortalecer a educação, a cultura e o debate público qualificado.

A identidade nacional brasileira não está pronta, e talvez nunca esteja – e isso não é um problema. Ao contrário, pode ser nossa maior riqueza: a capacidade de se reinventar continuamente, de se construir no diálogo e na diversidade. No entanto, para que isso aconteça, precisamos superar a lógica de inimigos internos e recuperar a ideia de um destino comum.

A polarização atual deve servir de alerta, não de sentença. O Brasil já enfrentou períodos de maior instabilidade e conseguiu se reinventar. O desafio de hoje é o mesmo de ontem: construir uma sociedade mais justa, democrática e inclusiva. Ao olharmos para pensadores como Freyre, Sérgio Buarque e Darcy Ribeiro, percebemos que a resposta está em reconhecer nossa pluralidade e lutar para que ela seja uma fonte de união, não de divisão.

O futuro do Brasil dependerá da nossa capacidade de transformar a diversidade em força e de fazer da política um espaço de construção, não de destruição. Nossa identidade nacional está em jogo, e cabe a cada cidadão, independentemente de sua posição política, contribuir para que ela seja marcada pela justiça, pelo diálogo e pela dignidade de todos.

 

Ronaldo Castilho é jornalista, bacharel em Teologia e Ciência Política, com MBA em Gestão Pública com Ênfase em Cidades Inteligentes e pós-graduação em Jornalismo Digital.

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