Cinco em Um
“Cantai
ao Senhor um cântico novo,
Cantai
ao Senhor toda a terra,
Cantai
ao Senhor, bendizei o seu nome,
Anunciai
a sua salvação de dia em dia”
Um dos salmos de louvor,
entoados com esmero, do ambão — mesa da palavra— na Igreja de São Judas Tadeu,
em Piracicaba, foi estudado e ensaiado com carinho e atenção pela salmista
Carina. Começara a cantar aos cinco anos de idade. Aos 15, durante a preparação
para a crisma na catequese para jovens, fez amizades com laços fortes e
duradouros. Conhecera Marcelo na adolescência, mas reencontraram-se somente
cinco anos após. Coincidentemente, ambos haviam terminado com os namorados, ao
mesmo tempo. Pouco depois, estavam juntos.
Carina vinha de um
relacionamento desgastado, onde aprendera a fumar narguilé. Nos finais de
semana, chamava amigos e passava a noite fumando e bebendo cerveja. Sentia,
forte, o efeito da nicotina: mal-estar e tontura. No dia seguinte, não se
recordava da noite anterior. Escondia, dos pais, o vício. Como se não bastasse,
somada a este, padecia de outra doença — a bulimia nervosa—, compulsão
alimentar com ingestão de quantidade exagerada de alimentos com alto teor
calórico, seguida da indução de vômitos e do uso de laxativos ou de diuréticos
para evitar o ganho de peso. Sofria, também, pressão dos pais para passar nos
vestibulares. Gostava de veterinária, mas queriam que ela cursasse agronomia.
Crescera no sítio no bairro do
Monte Alegre, ao lado da casa do avô Orivaldo, um dos primeiros empregados da
usina de mesmo nome. Via-o lidar com os bois e as vacas e cuidar dos cães e dos
gatos da vizinhança. Inspirava a neta.
Com as mesmas afinidades
(Marcelo formou-se engenheiro agrônomo na ESALQ), passaram a dividir os sonhos,
mas também os cigarros e os paieiros. Se demorassem a se reencontrar, ele
deixava alguns cigarros, que ela escondia num vaso de plantas. Desejava que a
mãe saísse da casa para poder fumar. Se os cigarros acabassem, saía à cata das
bitucas no meio do mato, jogadas por cima do muro. Comprou um pod para fumar no
banheiro e seus pais não perceberem. O vício tornara-se avassalador.
O pequeno dispositivo surgiu
como opção, supostamente, menos prejudicial à saúde do que o cigarro
convencional, ou até mesmo uma forma de ajudar a parar de fumar. Com esse
discurso enganoso, o cigarro eletrônico virou sensação e é consumido,
livremente, em bares, em festas e — o que é pior — nas escolas. Os cigarros
eletrônicos — ou vapes, pods ou e-cigs — são dispositivos
para administrar nicotina — a droga que provoca a dependência química mais
escravizadora conhecida.
Na faculdade, Carina ia ao
banheiro, no meio da aula, fumar. Em casa, fumava na cama, antes de dormir. Só
parava quando não tinha mais dinheiro para comprar, mesmo com a facilidade da
aquisição pelo whatsapp e da entrega a domicílio. Desconhecia o risco que
corria, mas desconfiou quando se viu com olheiras, a pele sem brilho e a
gengiva enegrecida; o peito chiava, tinha acessos de tosse e fez várias visitas
ao pronto atendimento da Unimed — tratavam-na de bronquite, no entanto,
temerosa da reação dos pais, não contava, aos médicos, que consumia cigarros
eletrônicos.
Além da nicotina líquida, o
cigarro eletrônico contém aditivos e aromatizantes, como o glicerol e o
propilenoglicol que, quando aquecidos, se transformam em formaldeído,
substância conhecidamente cancerígena. Somam-se, a estes, os metais pesados —
lítio, níquel, cádmio — que desencadeiam lesões pulmonares agudas. Conhecem-se
os danos no curto prazo: eleva-se em 42% o risco de infarto do miocárdio, em
50% o de desenvolver asma em adolescentes, além de aumentar em 400% as chances
de se tornar um fumante de cigarro tradicional.
O rumo de cinco histórias
mudaria quando Marcos, o irmão mais velho, cansado de fumar paieiro na
faculdade, em Botucatu, vira as postagens do Paradas pro Sucesso. Procurou-me
e, animado com o tratamento, arrastou, consigo, o pai. O cunhado, vendo-o
exitoso, pegou-lhe a receita e comprou, para si, os remédios. Também queria
abandonar o vício. Carina, como dissimulava, queria juntar-se aos outros, mas
não podia fazê-lo abertamente. Ela e Marcelo fumaram, juntos, o último cigarro,
no dia 14 de maio. Encheram-se de coragem, leram a minha cartilha de orientação
e, mesmo sem os insumos suficientes, aplicaram os ensinamentos e as dicas e
conseguiram livrar-se dos cigarros. César, pai de Marcelo, aceitou as sobras
dos remédios e, entusiasmado com o filho exitoso, também conseguiu parar de
fumar.
Carina afastou-se do grupinho de
fumantes da faculdade, preferia ficar em casa e até chamava os cachorros para
dentro, para evitar sair ao quintal; comprou um Apple Watch para monitorar a
corrida e renovou a matrícula na academia. Um mês depois, surpreendeu-se ao
ouvir a própria voz na nave da igreja. Precisou afastar o microfone, tão clara,
forte e potente se mostrava. Procurou, com o olhar, o irmão Marcos, músico
também, e, juntos, sorriram satisfeitos.
Cinco em uma — com sua escolha, Marcelo
mudara o rumo de cinco histórias: a sua própria, a de seu pai, a de sua irmã, a
do cunhado e a do pai deste, pois vinha revestida de amor, de caridade e de
misericórdia.
Juliana
Barbosa Previtalli é médica cardiologista
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